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Mas eu sou como uma oliveira que floresce na casa de Deus; confio no amor de
Deus para todo o sempre. Salmo 52:8

Sobre o diagnóstico da Vitória

Falar sobre o diagnóstico da Vitória nunca teve muita importância para nós. Desde o início decidimos que buscaríamos amá-la e acreditar nela independente de qualquer resultado de exame. Desde o início cremos que Deus é quem decidiria sobre sua vida e não um laudo médico. Demos a ela o nome de Vitória de Cristo e sempre nos referimos a ela como uma criança muito amada, abençoada, muito especial e cheia de potencial,  e nunca como uma criança condenada à morte, defeituosa, problemática. Temos consciência de que ela tem uma malformação séria e muitos desafios, mas acreditamos que isso não é tudo o que ela é. Ela é uma criança maravilhosa, linda, única e insubstituível, apesar de sua malformação. Acreditamos nas palavras de Jesus sobre fé, Acreditamos na existência de um Deus vivo, poderoso, próximo,  justo e cheio de amor e misericórdia, (que infelizmente nem sempre é o Deus que é anunciado por muitas religiões) e acreditamos também que amar e acreditar em um ser humano pode fazer muitos milagres que a ciência não pode explicar.

E para nossa alegria, e confirmando nossa fé em um Deus real, vivo e muito próximo, é exatamente isso que tem acontecido, a Vitória tem contrariado prognósticos e apresentado reações que não condizem com os seus exames.

Não gostaria que minha filha fosse classificada por sua malformação, que as pessoas se referissem a ela como uma criança anencéfala, deficiente, sem crânio, sem cérebro ou qualquer outra descrição. deste tipo (todas horríveis por sinal). Gostaria que sempre se referissem a ela como uma menina muito amada e muito guerreira, como aquela menina que enfrentou tantos desafios e superou expectativas. Que tem chegado tão longe com o pouco que recebeu da natureza e encorajado a muitos.

No entanto, entendo a curiosidade natural de algumas pessoas de querer saber o que ela tem, e até mesmo de classificá-la por um nome. Faz-se necessário, portanto, esclarecer a todos que visitam este blog qual é o diagnóstico da Vitória, e para isso é necessário contar uma longa história.

Atualmente o diagnótico pelo qual a Vitória tem sido tratada, com base na sua avaliação clínica e nos exames de imagem, é de encefalopatia neonatal por malformação cerebral. Ou seja, ela nacseu com um quadro de deficiência neurológica causado por uma malformação cerebral.

Com 12 semanas de gestação, no primeiro ultrassom morfológico, descobriu-se que ela tinha acrania, ou seja, não havia se formado a calota craniana, mas havia se formado cérebro, e podíamos ver claramente o seu cérebro nas imagens. A gravidade desta malformação consiste no fato de que, quando não se forma osso, normalmente os demais tecidos que deveriam se formar acima dele também não se formam, e por isso o seu cérebro estava exposto em contato com o líquido amniótico, e dessa forma teria o seu desenvolvimento prejudicado no restante da gravidez. Isso porque o contato do cérebro com o liquido amniótico, de ph mais ácido, causa morte celular. Por isso o que normalmente ocorre (foram estas palavras que ouvimos) é que a acrania resulta em anencefalia e o bebê morre logo após seu nascimento (o que de fato é o que, infelizmente, normalmente ocorre). E mesmo que não se desenvolva totalmente anencefalia, a infecção é imediata assim que a criança nasce (foi o que também ouvimos dos médicos) e se ela não morrer por anencefalia, morrerá por infecção poucas horas após nascer. Por esse motivo, muitas mulheres que recebem o diagnóstico de acrania para seus bebês são fortemente aconselhadas pelos médicos a abortar, da mesma forma que se tem feito diante de um diagnótico inicial de anencefalia, lamentavelmente.

Como já relatamos em várias ocasiões aqui neste blog, nunca pensamos em tirar a vida da nossa filha, pois já a amávamos muito desde que soubemos da sua existência, e por isso desejávamos dar a ela todas as oportunidades de viver. A incerteza sobre o futuro e a possibilidade de perder a Vitória nos traziam muito sofrimento. Não havia nada concreto que pudéssemos fazer para ajudá-la. Mas ainda assim podíamos amá-la, respeitá-la e tratá-la com dignidade e respeito, e isso muito nos consolou em meio à tristeza pela sua malformação.

Prosseguimos a gestação e os exames continuaram apontando a condição de acrania, e também passaram a mencionar excencefalia, ou seja, o seu cérebro estava exteriorizado por ausência da calota.

Fazer os exames e ler os laudos sempre era emocionalmente muito difícil e doloroso. No entanto, a gravidez da Vitória foi muito agradável e maravilhosa. Com cinco meses e meio ela começou a se mexer bastante e inclusive reagir a nossa voz. E a minha saúde permaneceu excelente do início ao fim.
Nos últimos meses da gravidez, a Vitória, seguindo o curso da natureza, encaixou sua cabeça na posição para nascer, e por mais que a médica do ultrassom tentasse examinar como estava a situação do seu cérebro, não conseguia chegar a nenhuma conclusão porque sua cabeça estava escondida atrás dos meus ossos pélvicos. E tudo que ela podia escrever era: calota craniana não visibilizada. Adequada avaliação do pólo cefálico extremamente prejudicada pela deflexão posterior.

O que ela estava querendo dizer é que não conseguia identificar se o quadro da Vitória tinha se transformado em anencefalia ou não porque ela não conseguia examinar sua cabeça, que estava numa posição muito difícil para se fazer uma avaliação conclusiva. E permanecemos somente com o diagnóstico de acrania. Por esse motivo, também, nunca sentimos que a Vitória era anencéfala, nem em nossos corações, nem ao ler os exames pré-natais.

Com 38 semanas e 3 dias, a Vitória já estava posicionada fazendo pressão com sua cabeça para nascer (grande garota!). Eu ainda não estava tendo contrações, mas já estava com 2 cm de dilatação. Optamos por uma cesariana para poupá-la e para evitar possíveis complicações de um parto normal. Assim que fui internada para a cesariana, ouvi a enfermeira fazendo uma ligação para avisar a UTI que iria nascer um bebê anencéfalo (minha obstetra também já estava se referindo a ela como anencéfala). Achei estranho chegarem a esta conclusão se nem uma médica fazendo mais de um ultrassom havia conseguido chegar a essa conclusão. Mas naquele momento, nomes não iriam fazer diferença.

Finalmente a Vitória nasceu (você pode ler o relato do nascimento dela na página A lição do tic-tac) e foi levada para a UTI Neonatal, onde recebeu o diagnóstico de anencefalia. Nunca entendemos quais os critérios utilizados para esse diagnóstico. Mas sabíamos desde o início que a acrania resultaria em anencefalia, e assim que ela nasceu fomos avisados que ela viveria por apenas algumas horas.

No entanto as horas correram e se tornaram dias, e os dias correram e se tornaram meses. Com dois meses de vida um neurocirurgião a examinou e disse que somente poderia se confirmar o diagnóstico de anencefalia por um exame de imagem, preferencialmente uma ressonância. No entanto para fazer a ressonância ela precisaria levar anestesia geral e ser intubada, o que poderia ser arriscado para ela, já que ainda era muito pequena e frágil.  Não valia a pena expô-la a um risco desnecessário apenas por curiosidade. Até o momento não havia nenhuma possibilidade de cirurgia para tentar fechar sua cabeça, nem havia relatos de que esse tipo de cirurgia já tivesse sido feito em alguma outra criança.

Durante todo esse tempo, a Vitória usava um curativo na região da cabeça, feito diariamente pelas enfermeiras. Nós participávamos das trocas de curativo e podíamos ver uma grande quantidade de estruturas exteriorizadas no lugar onde deveria estar seu cérebro. Vendo-a viva, e tendo tantas reações, não podíamos pensar outra coisa senão que aquilo era o seu cérebro exteriorizado! Porém a maioria dos médicos repetiam aquilo que se pode ler a respeito de anencefalia, que todas as reações eram apenas reflexos e que aquele tecido exteriorizado era malformado e sem funcionamento.

Aos quatro meses de vida, finalmente surgiu uma possibilidade de cirurgia, e a Vitória já estava clinicamente muito estável, então fizemos uma ressonância magnética. O laudo da ressonância tenta definir a condição da Vitória como anencefalia incompleta, ou seja, é possível visualizar apenas partes malformadas do cérebro, e não é possível identificá-las. O neurocirurgião que a operou deu sua opinião de que ela não é anencéfala, já que uma criança anencéfala possui apenas o tronco cerebral, e nada mais acima do tronco, e a Vitória possui um cérebro malformado acima do seu tronco cerebral. No laudo em que fazia a solicitação para a cirurgia, ele tentou descrever sua condição como encefalocele acrania. Ele explicou que ela possui uma malformação cerebral para a qual não há um diagnóstico definido e estes nomes são apenas tentativas aproximadas de se descrever sua malformação. E apesar de tudo isso, a pediatra que lhe deu alta hospitalar ainda manteve o diagnóstico de anencefalia. Na falta de um diangóstico melhor, ela preferiu manter o diagnóstico inicial, mas explicou que é necessário maturidade médica para se analisar o caso da Vitória como sendo um caso de anencefalia muito diferente dos demais.

Já fora do hospital, a neuropediatra que tem acompanhado o seu desenvolvimento acredita que a Vitória não é anencéfala. Para ela, apesar de as imagens mostrarem um cérebro malformado que dificilmente teria como se organizar e funcionar, a avaliação clínica mostra que este cérebro está funcionando muito melhor que o esperado, apesar de tudo. O que ela diz é que não se pode dar um diagnóstico olhando apenas para um exame sem se olhar para o paciente, especialmente num quadro neurológico, e no caso a Vitória esclarece muito os seus exames, apresentando vontades, personalidade, emoções, movimentos voluntários, enfim, reações que estão muito longe de serem meros reflexos involuntários originados no tronco cerebral. E para esta médica, a maior prova de que a Vitória não é anencéfala é o fato de ela estar viva. Olhando para a Vitória percebemos claramente que ela não é uma criança inconsciente em estado neuro-vegetativo, como se acredita que crianças anencéfalas sejam, (apesar de que pessoalmente também não acredito que crianças totalmente anencéfalas sejam inconscientes). Ela é uma criança muito sensível, perceptiva, cheia de vontades e personalidade, porém com uma grave deficiência neurológica.

Não é possível afirmar com certeza como será o desenvolvimento da Vitória (dizendo por exemplo que nunca vai andar, que nunca vai falar, etc). O que todos os médicos concordam é que é muito importante que ela seja estimulada para que seu cérebro imaturo e malformado consiga se desenvolver ao máximo. Ela pode aprender muitas coisas de fora para dentro, por meio de estímulos e terapias. Sabemos atualmente que ela possui deficiência visual (ainda não se sabe se total ou não) e atraso no desenvolvimento motor, e provavelmente também possui uma deficiência cognitiva. Exames de triagem auditiva também revelaram que ela ouve, porém melhor com o ouvido esquerdo do que com o direito.
Ouvimos falar muito a respeito de anencefalia, porém encontramos pouca informação a respeito de acrania. No entanto, muitos artigos descrevem o início da anencefalia a partir da ausência da calota craniana. E alguns artigos descrevem a anencefalia como a ausência de cérebro em diferentes graus. E lendo relatos de crianças que viveram alguns dias ou meses com anencefalia, percebemos que muitas delas apresentam reações, tentam se comunicar, sentem dor, choram, riem... o que me leva a crer que muitas crianças com anencefalia possuem um pouco de tecido cerebral acima do tronco.

Por toda esta longa história, continuamos mencionando a palavra anencefalia neste blog, pois muitas famílias recebem este diagnótico e não são informadas que existem casos (apesar de rmuito raros) de crianças que vivem por alguns dias ou meses com anencefalia. E, se os médicos levaram tanto tempo para chegar a conclusão de que a Vitória possui um cérebro, e portanto não é  totalmente anencéfala, como podem em alguns poucos exames nos primeiros meses de uma gravidez, condenar uma criança à morte com o diagnóstico de anencefalia? Como podem afirmar com tanta certeza que esta criança não sente nada, é inconsciente e vegetativa, se sabe-se tão pouco a respeito desta condição? Ao que me parece, os médicos ainda não conseguem explicar por que algumas crianças anencéfalas morrem logo após nascer e outras vivem por alguns dias, meses, e até mesmo anos. E mesmo assim, muitos deles afirmam categoricamente que o melhor é que a gravidez destas crianças seja interrompida

Acredito que toda a criança tem o direito de lutar pela vida, de ser amada, respeitada e tratada com dignidade. E, nascendo com vida, tem o direito também receber todos os tratamentos existentes para a sua sobrevivência e qualidade de vida. Tudo o que fizemos pela Vitória desde sua concepção até hoje foi simplesmente respeitar os seus direitos. Nada mais do que isso E ainda assim, isso representou tanto em sua vida! (e ainda assim, muitas vezes temos sido tratados praticamente como heróis por simplesmente amar e respeitar os direitos da nossa própria filha!).

Espero que a vida da Vitória possa repercutir na vida de outras crianças, que recebem diagnósticos incompatíveis com a vida. Que estas crianças recebam também a oportunidade de passar todo o tempo possível com seus pais durante a gravidez, tendo uma vida digna e, se a morte se mostrar inevitável ao final da gestação, que seja também digna, ao lado dos seus pais, e que estes possam se despedir delas com respeito e amor.
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