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Mas eu sou como uma oliveira que floresce na casa de Deus; confio no amor de
Deus para todo o sempre. Salmo 52:8

A lição do tic-tac (Nascimento da Vitória)


Porque Deus amou o mundo tanto, que deu o seu único Filho, para que todo aquele que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna. João 3:16
Vitória recém-nascida

Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês, diz o Senhor, planos de fazê-los prosperar e não de lhes causar dano, planos de dar-lhes esperança e um futuro. Então vocês clamarão a mim, virão orar a mim, e eu os ouvirei. Vocês me procurarão e me acharão quando me procurarem de todo o coração. Jeremias 29:11-13

Depois que a Vitória nasceu, o tic-tac de um relógio nunca mais passou despercebido aos meus ouvidos. Antes eu não dava muita bola para aquele ponteiro discreto que marcha suavemente ao redor do relógio anunciando os segundos. Às vezes nem percebia aquele tic-tac que nos avisa baixinho que um segundo passou, e outro, e mais outro. Que o tempo está passando.

Um dia antes de a Vitória nascer, eu havia dito à minha obstetra que gostaria de vê-la assim que nascesse, independente de qualquer circunstância. Eu estava tranquila e, não sei explicar como, eu estava feliz. Durante os seis meses que se passaram desde que descobrimos o seu diagnóstico de acrania, “incompatível com a vida”, nós oramos e clamamos a Deus a cada dia por ela. Nós choramos, jejuamos e nos prostramos diante de Deus dizendo que a amávamos e acreditávamos que Ele a podia salvar. E que não iríamos nos conformar com o que a medicina dizia a seu respeito. Chegada a véspera do parto, eu estava em paz. Sabia que havíamos feito tudo o que estava ao nosso alcance: Oramos, amamos e protegemos aquele bebê enquanto estava em minha barriga. E esperamos em Deus. Agora Ele faria o melhor.

As horas se passaram rapidamente e quando percebi já estávamos na sala de preparação aguardando a enfermeira que me levaria para a sala de parto, onde a Vitória nasceria por meio de uma cesárea. Neste momento meu coração começou a se angustiar. Durante a gestação, apesar de termos orado incessantemente por um milagre, os exames não deixavam dúvidas sobre a malformação. Além da acrania, nossa filha também apresentava crescimento restrito e os pezinhos tortos, como consequência da malformação cerebral. Jesus nos ensinou para perseverarmos em oração e, por isso, oramos mais uma vez pedindo que Deus curasse nossa filha. No momento do parto, após levar a anestesia, senti um imenso desconforto ao perceber meu corpo perder a sensibilidade. As pernas formigaram até não senti-las mais. Parecia que não tinha mais corpo. Me sentia reduzida a uma cabeça com ombros. Uma sensação muito desagradável. Tudo o que eu via era o teto iluminado, um grosso pano azul escuro à minha frente e o anestesista, que volta e meia aparecia. Assim que o Marcelo chegou, fiquei mais calma. Ele me encorajava e sorria para mim. Falava-me de Deus, do seu amor e alegria por nós estarmos ali dando vida a nossa filha. Eu só conseguia tremer e bater os dentes. Sentia que estavam preparando minha barriga para o corte e ficava mais angustiada. Era como se minha barriga estivesse muito, muito longe de mim. E parecia que a Vitória também estava se afastando: era o momento da nossa separação, depois de longos e maravilhosos nove meses juntas.

Sentia frio. Tentava sem sucesso travar os maxilares para parar de bater os dentes. Toda a equipe estava em silêncio, diziam somente o necessário em voz baixa. Sentia-me muito desconfortável em meu próprio corpo. Gostaria de não estar ali, de não precisar passar por aquela cirurgia tão desagradável. Mas precisava passar por tudo aquilo pela nossa filha. Para dar-lhe a oportunidade de nascer. Por amor e por respeito a sua vida.

De repente, senti minha barriga mais leve. E então, ouvi um choro ecoando pela sala: ué, ué ué.... Nunca vou esquecer aquela vozinha doce e meio engasgada gritando alto e dizendo a todos: eu existo! O relógio marcava 7h41min da manhã. Uma das médicas disse: Que Deus te acompanhe. O chorinho foi ficando cada vez mais distante. Tive medo e pensei: O que aconteceu? Por que não vieram mostrá-la a mim conforme havia pedido? Será que ela morreu? Eu havia dito que queria vê-la de qualquer jeito, mesmo sem vida. Passados alguns minutos, o pediatra veio nos dizer que ela havia sido levada direto para a UTI. Olhou diretamente em meus olhos e com muito pesar nos disse que sua malformação era muito grave. Ele estava querendo dizer que ela ia morrer. Perguntou se desejávamos que ele a trouxesse para a vermos. Eu estava tão nervosa e exausta que não me senti em condições de conhecê-la naquele momento. E em meu coração pensei que talvez para ela fosse melhor ficar na UTI, e eu ir até lá vê-la, e não o contrário.

Minha médica, Dra. Ana Cristina, que havia respeitado nossa decisão e nos apoiado durante toda a gestação, veio me dizer que eu seria levada para a recuperação e ela voltaria para me ver no dia seguinte. E disse-me que, confirmando os exames pré-natais, ela havia nascido sem a calota craniana. “Normalmente nestes casos o que ocorre é infecção. Sei que você ouviu a respeito de algumas crianças que viveram meses ou anos, mas no caso dela acho que infelizmente isso não vai ser possível”.

Em seguida, uma enfermeira veio falar conosco. Disse que a nossa filha nascera com vida, pesando 1.785 kg e 38 cm e havia sido levada para a UTI, como já era esperado. Havia um toque de carinho e respeito em sua voz. Perguntou-nos como ela se chamaria. O Marcelo respondeu: Vitória. Ela anotou cuidadosamente num papel. Com acento? Sim, com acento e sem c.

O anestesista disse que me daria uma medicação para diminuir o tremor. Perguntou se eu desejava dormir. Disse-lhe que não. Apesar de sentir uma grande tristeza no meu coração, queria viver aquele momento em toda a sua intensidade. O Marcelo decidiu ficar comigo até o final da cirurgia, mas assim que fui levada para a recuperação, ele foi ver a Vitória. Pedi que dissesse a ela que logo eu iria conhecê-la também. Fui levada na maca, lembro de me colocarem dentro de um elevador, e depois finalmente eu estava sozinha. Triste, mas em paz. Chorava em silêncio. As lágrimas escorriam lentamente dos cantos dos olhos fechados. Deus manifestou sua vontade e permitiu que a Vitória nascesse com uma malformação gravíssima. Mas nós não deixamos de confiar nEle e de amar nossa filha de todo o coração. E fomos imensamente felizes com ela durante nove meses. Não ficamos somente chorando e nos lamentando. Proporcionamos a ela momentos de alegria e vida.  Senti que tínhamos cumprido a nossa missão e me sentia aliviada. Só havia uma coisa que me deixava apreensiva. Será que conseguiria ver minha filha com vida?

Sentia muito sono. Tentava dormir, mas sentia as lágrimas escorrendo lentamente pelo meu rosto. Cochilava levemente e acordava com as vozes das enfermeiras falando. Até que me acordaram dizendo que seria levada para o quarto.

- Vamos colocá-la na cama. Você vai sentir a sensação de que vai cair, mas você não vai cair.
Foi o que uma das técnicas de enfermagem me disse antes de me virar de lado na maca e, junto com outra colega, me arrastarem por meio de um lençol para a cama do quarto. Após uma manobra rápida, eu estava na cama do meu quarto, rodeada pela família e alguns amigos próximos. Sentia-me exausta.

Apesar de já conseguir mexer as pernas, a enfermeira do andar explicou que teria que tomar banho por volta das 15h30 e então, lá pelas 16h, me levariam numa cadeira de rodas até a UTI Neonatal. Durante esse tempo, o Marcelo foi vê-la muitas vezes. Ele voltava e dizia que ela era linda. Pedi-lhe que levasse a câmera e tirasse fotos. Em meu coração, tinha medo de não conseguir vê-la com vida. Sabia que algumas crianças com este problema nem mesmo nasciam vivas. Outras viviam poucos minutos ou poucas horas. E as horas foram passando.

Cada vez que o Marcelo entrava no meu quarto, eu sentia um frio na barriga e tentava identificar em seu rosto se ele trazia boas notícias. Logo ele sorria e dizia que a Vitória estava bem. Foram momentos de uma tristeza doída, mas o tempo todo eu me sentia confortada por Deus. Algumas pessoas vieram para me visitar. Eu estava meio sonolenta e muito emotiva. Tentava explicar com lágrimas nos olhos que estava tudo bem. A Vitória logo estaria com Deus e sabíamos que Ele nos sustentaria em todos os momentos.
É incrível mas por volta do mei-dia eu já sentia fome. Estava em jejum desde a noite anterior. Chegou o almoço. Uma sopinha de batata com couve. Ainda acostumada com o apetite voraz de grávida, esperava uma refeição mais completa. Chegou a hora do banho. Sentia muita dor. Quase não conseguia me manter de pé. Minha mãe e uma enfermeira me ajudaram. Para me vestir, uma dor insuportável. Minha irmã veio ajudar. Como é que tem gente que escolhe parto cesárea para não sentir dor? Apesar da fragilidade e da tristeza, por dentro eu me sentia forte e serena. Não havia desespero, nem revolta, nem angústia. Havia aceitação e paz. Alegria por confiar em Deus. Sabia que nossa atitude de glorificá-lo naquele momento ajudaria muitas outras pessoas que passam por situações de sofrimento. Sabia que Deus  não nos desampararia, que teríamos mais filhos, a vida ia continuar. Mas mesmo assim, sofria por não ter minha filha saudável e perfeita perto de mim, e saber que a qualquer momento ela poderia morrer.

Finalmente chegou o momento de vê-la. Uma técnica de enfermagem veio ajudar. Ainda usava sonda para urinar. Tinha acesso venoso e um monte medicamentos dependurados num suporte. Ela colocou a bolsa que coletava a urina dentro de uma sacola. Tiraram tudo que foi possível e lá fomos nós, quase que em procissão, para a UTI, rodeados de familiares. Sentaram-me na cadeira de rodas e percorremos um longo caminho até o elevador do 5º andar, onde estávamos. Descemos no segundo andar e fomos até a UTI. Nossa família nos acompanhou até a entrada. Dali em diante, seguiríamos sozinhos até o quarto da Vitória.


Colocamos aventais e lavamos as mãos. O Marcelo foi empurrando a cadeira, enquanto eu esfregava as mãos molhadas de álcool gel. Sentia o cheiro forte do álcool nas minhas mãos geladas e uma grande apreensão no coração. Como vai ser conhecê-la? Tinha medo. Percorremos um longo corredor, e de repente, lá estava ela, deitada dentro da incubadora. Era branquinha e roliça, e dormia tranquilamente. Sua cabeça estava coberta por gazes e por um lençol dobrado. Suas mãos eram lindas, com dedos compridos e finos. Um pezinho era perfeito e outro bem tortinho.


Podia ver sua deformação. Os olhinhos eram mais salientes e acima deles não havia mais pele, e sim uma reentrância escura, e depois estava tudo coberto pelo curativo, de forma que não conseguia ver mais nada. Passamos mais álcool gel e o Marcelo abriu a portinhola da incubadora. Estendi o braço e toquei sua mão. Sua pele era macia e estava quente. Falei com a voz trêmula e emocionada: “Oi meu amor, é a mamãe". Pausa para respirar fundo. "Que bom que você me esperou. Eu te amo muito”. Fiquei acariciando sua mão em silêncio por algum tempo e então lhe disse: “Que Deus te abençoe, minha filha. Você é muito especial. Nós te amamos”. O Marcelo tirou algumas fotos e gravou um vídeo, e depois também colocou a mão do outro lado da incubadora. Ficamos acariciando seu corpinho em silêncio. Tudo que eu ouvia era o barulho de um grande relógio que havia na parede. Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac. Enquanto aquele ponteiro andava lentamente, eu conhecia minha filha com vida. Como se fosse um cronômetro. Como se fosse um resumo da nossa frágil existência. Ouvindo cada segundo passar, pensei: Meu Deus, por quanto tempo esse relógio ainda vai bater? Por quanto tempo ela ainda vai viver? Aquele tic-tac do relógio me lembrava que algo muito importante estava acontecendo: estávamos vivos.

Fiquei feliz e em paz ao ver que ela estava sendo tratada com dignidade. Deitada em uma incubadora quentinha, em lençóis limpos, recebendo alimento. Sua vida estava sendo respeitada. Nos estávamos ali com ela. Ela não estava sozinha. Agradeci tanto a Deus por nos proporcionar tudo aquilo.

“Me perdoe por não ter vindo antes. Eu passei por uma cirurgia para você nascer e estou me recuperando. Ainda sinto dor e não consigo andar direito. Mas logo vou melhorar e vou poder ficar mais tempo com você”. Tiramos fotos. Acho que ficamos lá por uns quarenta minutos. Comecei a me sentir fraca, meio tonta. Nos despedimos dela, com a promessa de que voltaríamos à noite, e saímos. Senti muita dor para me levantar da cadeira de rodas. Não lembro de ter ouvido amigas que fizeram cesárea dizerem que sentiram tanta dor. Talvez a alegria por ter nascido seu filho as tenha feito esquecer a dor. No meu caso, eu estava feliz e ao mesmo tempo triste. Não sei se doíam mais os pontos ou o coração.

Finalmente deitei e dormi por umas três horas. Depois de jantar, fomos vê-la novamente. Dessa vez fui andando, me apoiando no Marcelo. Percorremos lentamente o longo corredor da UTI. Quando chegamos, ela estava se mexendo na incubadora. Parecia agitada. O lençol que cobria sua cabeça havia caído. Lembro de ter visto que o lençol estava sujo de sangue. A enfermeira sugeriu que esperássemos na ante-sala. Fiquei espiando de longe enquanto ela preparava os materiais para refazer o curativo - parecia um pouco tensa. Disse-nos que haviam tentado dar leite por via oral (isto é, por mamadeira), mas ela se estressara muito. Enquanto faziam o curativo, ela abria e fechava a boca de olhinhos fechados, como se chorasse em silêncio. Era muito triste ver sua condição, com a cabeça aberta, tão frágil. Realmente não é possível viver com este problema. Neste momento me questionei se não havia sido teimosa demais pedindo a Deus que ela vivesse. Cheguei a me questionar se o melhor mesmo era ter continuado o gestação e permitido que ela nascesse com vida. Não seria muito sofrimento para ela? Não deveria ter aceitado desde o início sua condição irreversível e deixado o curso da vida seguir naturalmente, me preparando para a sua morte?

No dia seguinte, quando estava com ela, disse-lhe que estava livre para ir para Deus. Que eu a amava e um dia a encontraria no céu. Disse-lhe que não tivesse medo porque Jesus sempre estaria com ela. Que Deus a amava muitíssimo. Senti-me triste por não poder pegá-la no colo, vesti-la, amamentá-la e levá-la para casa. Como eu a amava. Como sonhara com sua vida. Como desejara que ela vivesse. Mas talvez isso não fosse o melhor para ela, naquela condição. Orei a Deus e disse que, se quisesse, podia levá-la. Nunca havia orado isso durante a gestação. Não lhe pediria que fizesse isso, mas não ia mais ficar insistindo e teimando para que ela vivesse. Orei para que fosse feita a sua perfeita vontade. Lembrei Jesus no Getsêmani dizendo: seja feita a tua vontade e não a minha. Como deve ter sido difícil para ele fazer aquela oração. Como era difícil para mim.
Abri a incubadora e peguei sua mãozinha. Comecei a lhe contar tudo que acontecera desde o início:
Sabe, meu amor, quando eu descobri que estava grávida, fiquei muito feliz porque você já existia. Quando eu te vi no primeiro ultrassom, tão pequenininha e já com um coração batendo tão forte, meu coração ficou maravilhado. Eu sonhei tanto com você. Como eu fiquei feliz! Mas eu corria o risco de te perder. Pedi tanto a Deus por você, porque eu já te amava muito. Depois, descobrimos que você tinha um problema grave e podia morrer. Ficamos muito, muito tristes. Pedimos a Deus por você, para que Ele te curasse, para que você pudesse viver. Foi uma alegria carregar você na minha barriga. Foi um privilégio ser sua mãe. Eu nunca vou me esquecer de você. De cada chutinho que você me deu. De todos os momentos que vivemos juntas. Deus permitiu que você nascesse assim. Ele sabe de coisas que nós não sabemos. Mas logo você  irá para o céu e lá vai receber um corpo perfeito. Jesus morreu na cruz para nos perdoar e nos dar uma nova vida. Jesus morreu por você e por mim. Eu queria tanto que você ficasse conosco. Preparei tudo para você chegar. Talvez você não use as roupinhas que eu lavei e passei para você. Mas você vai chegar no céu e vai usar roupas muito mais lindas. Roupas que não se estragam, nem se rasgam. Que nunca saem de moda. Você não vai tomar o leite que meu corpo está produzindo. Mas no céu haverá um lindo banquete preparado para você. Quando você chegar no céu haverá uma grande festa para te receber. Talvez eu não consiga te pegar no colo. Mas eu pedi que, assim que você chegar lá, Deus pegue você no colo por mim.

Enquanto eu falava tudo isso, senti meu rosto todo molhado. As lágrimas fluiam livremente dos meus olhos sem que eu percebesse. Chorava com a mesma naturalidade com que respirava. Mas eu não me sentia triste. Me sentia absolutamente em paz. Leve. Como foi bom para mim dizer tudo aquilo para minha filha. Todo o medo que havia de conhecê-la, de ela nascer com um problema tão grave, tudo estava curado. Eu me sentia completa. E à medida que eu dizia aquelas palavras para ela, me dava conta de quão precioso foi o sacrifício de Jesus na cruz. Ele não tinha somente morrido por mim, para me dar uma nova vida. Ele tinha morrido para dar uma nova vida e um novo corpo para minha filha. E isso era muito mais precioso do que a minha própria vida. Percebi quanto amava Jesus por isso. Muito obrigada, Jesus. Muito obrigada.

De repente, olhei para o lado e vi a técnica de enfermagem com os olhos vermelhos. Ela olhava para baixo e parecia tentar disfarçar que estava emocionada.

No quarto da maternidade, muitos amigos vieram nos visitar e havia um agradável clima de descontração. Ganhei flores. Todos eram muito amorosos. Graças a Deus, a antiga empresa em que o Marcelo trabalhava manteve o convênio médico para que eu pudesse fazer o parto em um bom hospital. O quarto era muito confortável e aconchegante. A comida era deliciosa e adaptada às minhas preferências. Lembro-me de estar almoçando e olhando as lembrancinhas que fizemos para dar aos que nos visitassem. Havia dois versículos bíblicos, seu nome e a data do seu nascimento:

O que é nascido de Deus vence o mundo, e esta é a Vitória que vence o mundo: a nossa fé. I João 5:4

Desde que nasci fui entregue a ti, desde o ventre materno és o meu Deus. Salmo 22:10

Vitória de Cristo Schmitz Croxato
13 de janeiro de 2010

Muito obrigada pelo carinho!
Enquanto eu comia, lia os versículos das lembrancinhas e chorava. Pequenas lágrimas escorriam dos meus olhos e eu secava com o guardanapo mesmo. Me sentia triste e ao mesmo tempo confortada por aquelas palavras. Me orgulhava por nossa filha. Vitória de Cristo. A vitória que vence o mundo. Me orgulhava da história que estávamos vivendo. Apesar de algo tão triste e inesperado, estávamos conseguindo enxergar tanta beleza naquilo tudo. Graças a Jesus. A Vitória já havia marcado as nossas vidas e a vida de muitas pessoas. Estávamos conhecendo mais a Deus e nos tornando mais fortes. A vida nunca mais seria a mesma.

Naquela noite, tive um sonho. Sonhei que eu subia uma montanha escura, por um caminho muito difícil e tortuoso, cheio de perigos. Eu me embrenhava em meio a arbustos, pulava obstáculos e corria, como se fugisse de algum perigo. De repente, cheguei ao topo do monte e havia uma festa com muitas luzes, comida e pessoas festejando com muita alegria. Mas lá embaixo havia escuridão e perigos. Acordei meio assustada e imediatamente pensei na Vitória. Peguei meu celular e olhei a hora. Era mais ou menos quatro e meia da manhã. Pensei angustiada: será que minha filha está viva? Ela estava bem quando saímos, mas será que ainda está bem? Agradeci muito a Deus por ter permitido que ela vivesse e que a conhecêssemos. Então comecei a chorar, não mais suaves e discretas lágrimas, mas uma enxurrada de lágrimas e soluços doídos . O Marcelo dormia no sofá ao lado. Era somente eu e Deus dividindo aquele choro. Enquanto as lágrimas vinham, pedi a Deus que permitisse que a Vitória continuasse viva, que assim que o dia amanhecesse eu pudesse ir até a UTI e encontrá-la viva. Como Deus era sábio. Como Deus era bom. Como sua vontade era perfeita. Estava sendo tão bom a Vitória viver estes dias conosco para que a conhecêssemos. Eu precisava daquilo. Senti vontade de me levantar e ir vê-la. Mas no dia seguinte o Marcelo tinha uma entrevista de emprego logo cedo (ele estava desempregado desde o quarto mês da minha gravidez). Não seria sábio acordá-lo às quatro e meia da manhã. Também não seria prudente eu ir sozinha, podia me sentir mal e não ter ninguém perto para ajudar. O melhor era esperar e ir de manhã, assim que minha mãe chegasse.
De manhã minha mãe veio e foi comigo até a UTI, mas ficou esperando do lado de fora – só era permitida a entrada dos pais para ver os bebês internados. Cheguei ao quarto da Vitória ansiosa. Era a técnica Carla que estava cuidando dela. Ela foi muito simpática, conversou comigo sorrindo. Parecia que estava tudo bem. A enfermeira Muriel estava lá também, e me perguntou se eu queria pegar a Vitória no colo. Fiquei super feliz. Ela estava muito quente dentro da incubadora, por isso a colocaram só de fralda envolta em um lençol no meu colo, e ficaram do lado de fora da sala, com a porta encostada. Havia apenas um lençol sobre as gazes do curativo cobrindo sua cabeça e eu podia ver um pouco mais das estruturas cerebrais por baixo do lençol.

Quando a peguei em meus braços, senti uma alegria e uma paz indescritíveis. Percebi que seguir em frente com a gravidez havia sido a decisão mais certa de toda minha vida. Senti que estava exatamente no lugar certo, no centro da vontade de Deus, amando minha filha. Comecei a conversar com ela. Parecia que ela me espiava, só com o olhinho direito entreaberto. Ainda não havia visto seus olhinhos abertos. Disse para ela todo o salmo 23.
Jesus é o seu pastor, e por isso nada nunca te faltará. Ele te faz descansar em águas tranquilas. Jesus está contigo. Ele te ama e te guia. Não é preciso temer. Mesmo se você andar por um vale de trevas e morte, Jesus nunca te abandonará. Ele está preparando um banquete para ti. Ele vai te honrar. Sua bondade e fidelidade nunca te abandonarão. Que Deus te abençoe, minha filha amada.

Era como se o tempo houvesse parado, e nós ficaríamos ali pra sempre, juntas e felizes. Nada mais importava - nem malformação, nem desemprego, nem casa, nem carro, nem estudo, nem futuro ou presente ou qualquer outra coisa. Nenhuma preocupação desta vida tinha mais a menor relevância. Eu me senti feliz e em paz, como nunca havia me sentido antes.
Fiquei olhando para ela, segurando sua mãozinha. E lá estava o barulho do relógio na parede: tic-tac, tic-tac, tic-tac. Graças a Deus por aqueles segundos de vida tão preciosos. Muito obrigada, Senhor, por estes momentos únicos com minha filha.

Alguns dias depois, a enfermeira veio conversar comigo e me disse que, enquanto a Vitória estava no meu colo, ela ficou observando de fora o aparelho que media os seus sinais vitais. Até então ela tinha alguns momentos perigosos de queda de frequência cardíaca e de saturação, mas depois daquele dia teve uma melhora significativa.
No dia seguinte ao parto, o Marcelo foi registrar a Vitória no cartório que fica dentro da maternidade. E na sexta-feira foi buscar a certidão de nascimento. Ele entrou no quarto sorridente e orgulhoso. Olhei a certidão e também fiquei feliz. Vitória de Cristo Schmitz Croxato. Nossa primeira filha. Dedicada a Deus.


A Vitória nasceu numa quarta-feira de manhã, e no sábado recebi alta. Pela manhã fomos vê-la e pedimos para conversar com o pediatra responsável. A Dra. Mayla apareceu. Não sabia o que lhe perguntar. Disse que estava indo para casa e gostaria de saber como a Vitória ficaria. Ela foi muito simpática e carinhosa. “O nosso trabalho aqui será deixá-la o mais confortável possível, fazendo tudo que está ao nosso alcance para que ela se sinta bem. Pois foi ela que escolheu ficar”. Perguntei se ela poderia usar alguma roupinha que havíamos trazido na sua malinha e se podíamos deixar lá o quadrinho que havia pintado como enfeite de maternidade. Ela disse que sim, que era só embalar o quadro em filme plástico, e que ela podia vestir todas as roupinhas para tirar fotos e ficar de body dentro da incubadora. A técnica de enfermagem que estava naquele horário, a Silvone, ficou super empolgada nos ajudando a vestir as roupinhas, que ficaram gigantes. Mas como nós ficamos felizes e realizados naquela manhã! Levaríamos a sua malinha de maternidade vazia para casa: ela iria usar todas as coisas que havíamos levado.

Mas como poderia deixá-la no hospital e ir para casa? Se ela sofresse, se ela sentisse dor, se ela se sentisse sozinha? Antes de sair, nos ajoelhamos no quarto a pedimos a Deus que nunca a abandonasse. Clamei com lágrimas a Ele que estivesse pessoalmente lá do lado dela. Que enviasse muitos anjos para protegê-la. E lhe fiz um pedido muito especial. Que ela pudesse ver Jesus ao seu lado, para que não se sentisse sozinha, mesmo na nossa ausência.

Passei um pouco de maquiagem no rosto: pó, blush, batom, e pus uma roupa bonita para sair - ainda eram as roupas de grávida que serviam, agora bem mais largas. Minha irmã havia vindo me ver e trouxera maquiagem e sapatos novos de presente. Queria me sentir bem e bonita. Aquele era o momento que eu mais havia temido durante a gestação: sair da maternidade de braços vazios. Mas não, não havia vazio algum. Nada de tristeza ou derrota. Saí de lá feliz. Deixar a Vitória vestida com as roupinhas que havia lavado e passado para ela havia enchido meu coração de alegria. Além disso, ela estava viva e voltaríamos mais tarde para vê-la. Conhecê-la, dizer-lhe que a amava, carregá-la em meus braços, todos aqueles momentos tão intensos haviam enchido meu coração de tanto amor e de paz.  Nós éramos vencedores junto com a nossa filha.
Minha sogra veio nos buscar, e antes de deixar o hospital tiramos algumas fotos fazendo V de Vitória. Ela não estava ali conosco fisicamente, mas estava presente nos nossos corações e no sorriso dos nossos lábios.
Emocionalmente estava bem, mas o percurso até em casa foi bem doloroso - fisicamente mesmo. A cada pequeno balanço do carro sentia muita dor nos pontos da cesárea e tentava segurar a barriga com a mão pra ver se doía menos.

A cada dia voltávamos a UTI para estar com a nossa filha. Não sabia o que aconteceria dali pra frente. Aquele percurso hospital - casa, casa - hospital seria repetido diariamente nos próximos cinco meses e se tornaria a nossa rotina. Mas naqueles primeiros dias tudo era tão novo e inesperado. Ainda sentia dor e andava devagarinho pelo corredor da UTI que nos levava até seu quarto. No dia seguinte à minha alta, uma novidade: ela havia saído da incubadora e estava em um bercinho. Podiamos ficar com ela no colo o tempo que quiséssemos. A técnica de enfermagem da noite, a Josany, me pediu para levar mais roupinhas quentes, luvas e meias, pois a sala era muito gelada. Naquela mesma semana compramos vários macacões quentinhos, os menores que achamos, pois os que havia ganho eram muito grandes para seu corpinho tão pequenino, e não eram muito quentes. Também estava começando a receber leite na mamadeira. Eu havia tomado um medicamento no dia anterior para secar o leite. Começava a sentir dor e como ela não conseguia mamar e sua perspectiva de vida era muito curta, fui aconselhada a secar o leite para evitar complicações. Mas logo, vendo-a mamar na mamadeira, fiquei muito arrependida.

A cada dia chegávamos lá e agradecíamos a Deus por ela estar viva. E lá estava o relógio na parede nos mostrando que cada segundo era muito precioso. Na semana seguinte, decidi que ia tentar tirar leite no banco de leite, apesar de haver tomado aquele remédio. Para minha surpresa o leite não havia secado em dois dias como era esperado. Havia diminuído, mas após uma semana de estímulo por bomba, já estava conseguindo mandar bastante colostro para ela.

Confesso que estranhei essa rotina de UTI nos primeiros dias. Quando tive a confirmação de que ela nascera sem a calota craniana e fora considerada anencéfala, imaginei que ela viveria por poucas horas. Depois pensei que ela viveria por poucos dias. Nunca havia me preparado para aquela longa e cansativa maratona de UTI. Havia sido preparada pelos médicos para perder um bebê. Para ver com tristeza minha filha partir, fazer seu enterro e guardar suas lembranças. E em meu coração havia pedido a Deus por um milagre de que ela fosse curada e pudesse nascer perfeita. Mas diferente de tudo que era esperado, ela estava viva e tinha uma grave malformação. Apesar de todo amor que sentia por ela, e do desejo que crescia a cada dia de que ela continuasse viva, parecia-me assustadora a ideia de cuidar dela sozinha. Sentia-me totalmente despreparada. Não sabia como fazer seu curativo na cabeça, como alimentá-la por meio da sonda, e parecia-me que o melhor para ela era continuar lá na UTI, onde estava sendo extremamente bem cuidada por excelentes profissionais. Mas a cada dia nos apegávamos mais àquela bebezinha tão pura e graciosa e aumentava em nós o desejo de estar sempre com ela. Ela era única e insubstituível. Seus olhos transbordavam doçura. Ela simplesmente vivia, inocente, frágil e tão pequenina. Não se esforçava para mostrar nada a ninguém - se era capaz ou não de qualquer coisa. Parecia se sentir segura e em paz. Sem se importar de ser considerada inferior por tantas pessoas por causa da sua deficiência. Sem se importar de tantas pessoas acharem natural que tirássemos sua vida precocemente porque não iria pra frente mesmo, ou porque eu ia correr riscos. Ela parecia saber exatamente o quanto era importante e valiosa independente de qualquer coisa que pudesse ter ou fazer. E ela estava certa: ela era muito amada por Deus e por nós.

Sua vida era radiante apesar de sua fraqueza. E a cada dia ela vivia, crescia e superava calmamente cada um dos grandes desafios que tinha diante de si. Parecia que o próprio Deus estava ali soprando o fôlego de vida em suas narinas a cada instante. Um sopro constante e suave, como o seu amor constante e incondicional por cada um de nós.

Muitas coisas aconteceram desde então, que estão relatadas aqui neste blog. A Vitória enfrentou alguns desafios e Deus lhe deu a vitória em todos. Passamos a viver momentos de alegria e até descontração com nossa filha. Mas volta e meia, quando a carregava no colo, ficava em silêncio e lá estava o mesmo relógio contando os segundos lentamente. Deus estava nos abençoando dia após dia com a vida da nossa filha. Pude carregá-la no colo, vesti-la, dar-lhe banho, amamentá-la e, no dia 21 de junho finalmente pude trazê-la para casa, onde ela está firme e forte conosco até hoje. Mas a cada vez que ouço o tic-tac do relógio, percebo que esta vida é curta demais, passageira, e que temos sido muito abençoados por estarmos vivos.

Existe um propósito para cada um de nós estarmos vivos. Ninguém pode estar vivo à toa, por acaso, por sorte. A vida é um milagre maravilhoso. Um ser humano se formar perfeitamente, nascer e viver é algo tão complexo e inexplicável, que não é possível ser fruto do acaso. Infelizmente muitos vivem a esmo achando que não têm um propósito, um sentido. Achando que não têm valor. Se soubessem que o Criador e Rei do Universo derramou seu próprio sangue para resgatá-los, se soubessem quão preciosos são! Desde que soube da malformação de minha filha comecei a pensar muito mais na vida. No sentido de tudo. Comecei a prestar muito mais atenção ao presente incalculável que é estar vivo. Comecei a prestar mais atenção ao tic-tac do relógio.

Um dia o relógio vai parar. Não só para a Vitória. Para todos nós. Não há como saber quando. Neste dia, eu quero encontrar Jesus e deixar que Ele me mostre o caminho até o Pai, como Ele prometeu a todos que o seguirem.

Espero que vocês também estejam ouvindo o tic-tac do relógio. E que esse som não seja um pesar, mas uma alegria. Pelas bênçãos que têm recebido de Deus, e por Jesus ter dado a vida para um dia poder nos levar para casa, quando o nosso relógio parar. Enquanto ele ainda está andando, há tempo de agradecer pela vida e viver o lindo propósito que Deus preparou para cada um de nós. Esse propósito certamente existe para cada ser humano criado, não importa se viva por uns poucos instantes ou por muitos e muitos dias. Eu não mais tenho dúvidas. Basta ouvir o tic-tac do relógio e olhar para o lindo sorriso da Vitória.

 






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