Parque Burle Marx - São Paulo - Fotos Joana S. Croxato |
...sejamos firmemente encorajados, nós, que nos refugiamos nele para tomar posse da esperança a nós proposta. Temos esta esperança como âncora da alma, firme e segura, a qual adentra o santuário interior, por trás do véu, onde Jesus, que nos precedeu, entrou em nosso lugar, tornando-se sumo sacerdote para sempre... Hebreus 6:18-20
Portanto, irmãos, temos plena confiança para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto é, do seu corpo. Temos, pois, um grande sacerdote sobre a casa de Deus. Sendo assim, aproximemo-nos de Deus com um coração sincero e com plena convicção de fé, tendo os corações aspergidos para nos purificar de uma consciência culpada e tendo os nossos corpos lavados com água pura. Apeguemo-nos com firmeza à esperança que professamos, pois aquele que prometeu é fiel. Hebreus 10:19-23
Mesmo que eu dissesse que as trevas me encobrirão, e que a luz se tornará noite ao meu redor, verei que nem as trevas são escuras para ti. A noite brilhará como o dia, pois para ti as trevas são luz.
Tu criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe. Eu te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas! Disso tenho plena certeza. Meus ossos não estavam escondidos de ti quando em secreto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir. Salmos 139:11-16
Tivemos um fim de semana ensolarado e agradável em São Paulo. Parecia verão. Céu limpo, sol, calor. Uma sensação boa de estarmos vivos e termos tanto a viver... mas um estranhamento de estarmos novamente só nos dois, sem nossa bebê amada, como se tivéssemos voltado no tempo, como se fôssemos mais jovens, casados há menos tempo. Mas quanta coisa que já vivemos! Especialmente nestes últimos três anos, e nunca mais seremos os mesmos.
Não vou dizer que está sendo fácil, tampouco que está sendo difícil, porque não há como avaliar ou comparar a ausência. E é estranho falar sobre uma ausência tão presente! Nos deitamos e acordamos pensando nela, andamos pensando nela e falamos sobre ela. Tenho me lembrado de muitos momentos da sua gestação, talvez porque é o período mais recente e marcante em que éramos o Marcelo e eu, saíamos bastante de casa, conversávamos, passeávamos, sempre curtindo ela em minha barriga. Agora curtimos ela em nossa memória e em nosso coração. Toda a nossa vida agora é lembrada antes, durante e depois da visita dessa ilustre princesinha do céu.
Saímos para caminhar em dois parques, sábado no Burle Marx e domingo no Ibirapuera. Fazia muito sol e toda a natureza parecia sorrir, as árvores, as flores, os pássaros, até as sombras das árvores, tudo era radiante e bonito. Nestes dois parques tínhamos levado a Vitória algumas vezes e pudemos lembrar de momentos felizes. Conversamos bastante, também lembrando das dificuldades que enfrentamos, como foram difíceis os momentos em que nossa gatinha ficou doente e internada, como sofremos por ela e com ela. E como nos alegramos toda vez que ela ficava boa e voltava a ser a mesma gatinha sapeca e feliz. Sentimos muitas saudades suas. Mas não consigo questionar a Deus ou me afundar na tristeza, porque Deus preparou nossos corações, desde o início, para olhar para as suas obras, para os seus propósitos e tentar ver um pouco tudo como Ele vê e não como nós, humanamente, costumamos ver a vida, a doença e a morte.
Desde a sua gestação teríamos motivos para chorar e lamentar. Mas não o fizemos. Muitas pessoas ao nosso redor se entristeceram e sequer sabiam o que nos dizer. O que eu sempre disse é que estávamos colocando a vida dela nas mãos de Deus e confiávamos que Ele faria o melhor. E sorria com a mão sobre minha barriga. Queríamos um milagre, tínhamos esperança, mas sempre a entregamos ao nosso Pai, pois somente Ele saberia o que fazer. Ela sempre esteve nas mãos de Deus. E sempre esteve livre para partir. Mas ela ficou. Por nove meses de gestação. Por uma hora, duas horas, 24 horas de vida. Uma semana, um mês, um ano, dois anos. Por trinta meses ela ficou conosco.
A primeira vez que ela adoeceu gravemente, em outubro do ano passado, eu lhe disse: "filha, se você está cansada, se você quer ir para Deus, você pode ir, você sabe que mamãe vai sempre te amar e um dia vai te encontrar. Mas se você quer lutar, saiba que mamãe está aqui para lutar com você. Mamãe vai cuidar de você sempre, e vai sempre pedir a Deus por sua vida". Por duas vezes ela disse que ficaria e lutaria. E como lutou! Mas entendo que ali Deus já estava preparando nossos corações para a despedida, sem que soubéssemos. Desta vez ela disse que estava cansada. Por doze horas eu fiquei ao seu lado sem comer, sem beber, somente pedindo a Deus por sua vida, segurando sua mão, observando-a atentamente e lhe dando força e amor. Então a médica veio avaliá-la novamente e nos disse quão grave ela estava e como não estava respondendo a nada. Antes que ela me dissesse isso eu já havia percebido, a pressão que não media mais, a falta da urina, os seus olhinhos abertos em silêncio querendo me dizer algo. Entendi que agora ela precisava ir. Tudo que eu sempre quis para ela era vê-la bem. Meu maior pavor era vê-la sofrendo sem conseguir reagir, sem perspectiva de sair do hospital e melhorar. Deus sempre ouviu nossas orações para que ela melhorasse. Sempre. E quando chegou este momento em que Ele permaneceu em silêncio diante a minha oração, eu entendi que era chegado o momento. Então eu lhe pedi que a levasse sem dor, que tivesse misericórdia dela e de mim. Eu lhe supliquei que a poupasse naquele momento. Talvez ela ficasse ali por horas, dias, semanas, em grande sofrimento. Mas Ele respondeu, mais uma vez. Até no momento da sua morte Ele mostrou seu amor cuidadoso, sua compaixão, seu carinho para conosco. Que Deus é esse que ouve a nossa oração, que nos carrega no colo, que nos exalta mesmo quando somos fracos, falhos, pecadores? Esse é o Deus que deu o seu Filho para salvar a minha filha da morte. Para sempre. E que me deu a minha filha para eu aprender a buscá-lo, e para eu entender tudo que seu Filho havia feito por mim. E quem sabe ajudar outros a também entenderem.
Durante sua vida, muitas pessoas se aproximaram para observá-la e eu percebia que sentiam pena por sua condição. Tudo que eu podia lhes dizer era que éramos felizes, que ela era amada e vitoriosa. E sorrir. Meu sorriso sempre foi a melhor resposta para os que questionavam se era difícil, se era triste ou sofrido ter uma bebezinha especial - e como ela era especial! Me entristecia perceber que havia pessoas que se entristeciam por nós. A vida da Vitória, por outro lado, sempre foi uma alegria. Pensava, puxa, como eles ainda não entendem? Interessante que ao mesmo tempo muitas pessoas também se aproximavam para nos parabenizar, para me abraçar e me dar força. Para beijar a Vitória, segurar sua mãozinha e dizer que ela era uma inspiração. Eu sempre agradecia e sorria em gratidão.
Hoje eu fico imensamente grata por tantas pessoas que me escreveram expressando seus sentimentos pela partida da nossa filha. Fiquei muito comovida vendo tantas pessoas que choraram junto conosco por ela, que se solidarizaram e escreveram palavras de apoio. Mas o que mais me alegra é saber que ela mudou a vida de inúmeras pessoas, que mudou a forma de muitos verem a vida, o aborto e as crianças com necessidades especiais. E me conforta saber que ela alegrou a vida de tantas pessoas e ainda é fonte de inspiração, de coragem, de amor. Que ela ainda aproxima as pessoas de Deus. Entendo que muitos ainda se entristeçam, mas meu desejo é que ela seja para todos uma lembrança feliz. Nada de probrezinha, tadinha... nada de não sei mais viver, não vou conseguir, quero morrer ou coisas do tipo. Diante de tudo que ela me ensinou, se agora eu chegasse e dissesse que "não entendo, meu Deus, por quê??" acho que ela lá do céu ia fazer aquele bico de brava e aquela cara de oncinha e perguntar: "puxa, mãe, você também ainda não entendeu???" E Deus ia dar uma boa risada!
Há inúmeras lembranças que me vêm à memória continuamente. Há tantas coisas que ainda quero contar sobre ela. Ao mesmo tempo tudo isso exige uma certa disposição emocional e física. Às vezes é preciso se distanciar para então se aproximar de novo de tudo isso que vivemos. Às vezes é preciso chorar e outras é preciso calar. E em outras é preciso rir. Porque é muito difícil enfrentar essa vida sem rir um pouco da gente mesmo e das nossas dores. E sempre é preciso buscar a Deus e agradecer.
Acho que existem um milhão de possibilidades sobre o que fazer daqui para frente. Sim, quero ter mais filho(s), sim, quero escrever um livro, sim, gostaria de voltar a trabalhar. Mas não, não quero ficar ansiosa, não, não quero ter pressa de nada, quero viver um dia de cada vez, quero ter tempo de chorar, de lembrar, de esperar a direção de Deus e do meu coração. Quero muito continuar a divulgar outras histórias, me dedicar mais a oferecer apoio e informação a outras famílias e lutar pela vida. Isso será feito em honra da minha princesinha que foi uma bênção nas nossas vidas para sempre.
No momento ainda estou tentando começar uma nova rotina - é extremamente estranho não ter que parar tudo que estou fazendo para atender uma gatinha manhosa e linda - acho que eu acabo sendo menos produtiva tendo mais tempo! Era tão bom não ter tempo e me sentir cansada e ao fim do dia olhar aquela menina linda no berço e pensar, como vale a pena, muito obrigada, Senhor!
Hoje somos muito mais maduros e acho que ainda somos felizes. Acabamos de nos despedir de nossa filhinha, ainda estamos de luto, sentindo a sua ausência a cada instante e tentamos nos acostumar com isso. Mas no tempo em que ela esteve conosco nos ensinou tanta coisa. E uma delas é que é possível ser feliz mesmo em circunstâncias adversas. É possível viver e ser feliz sem calota craniana e até mesmo sem um cérebro que possa ser visto e reconhecido pela medicina. É possível ser feliz com limitações e até mesmo quando estamos tristes, sim, isso faz parte da felicidade (imagina que horror uma vida inteira sem uma única frustação, uma única perda ou sem um único dia péssimo).
Hoje o que eu posso fazer é olhar suas fotinhos, seus vídeos, seu blog, e pensar, como valeu a pena, muito obrigada, Senhor! Cuidar dela foi a missão mais linda, mais nobre e maravilhosa que eu poderia ter tido. Mas também tenho que olhar para frente. Não faço ideia de como vai ser, e tenho muitos desafios. Mas sei que diante de minhas inquietações e dúvidas sobre o futuro, Deus olha para mim e me dá um grande sorriso como resposta. Não vai ser fácil, nunca foi, mas não estamos sozinhos.
esse sorriso com esses dois dentinhos foi a coisa mais linda que eu já vi na vida!